No farol de Sir
Quem é Sir Carvalho, o homem que criou uma ONG para um case específico e hoje é chamado Brasil afora e até no exterior para caçar corrupção. Até no STF eles já chegaram!
Texto Rejane Martins Pires
Fotos Bruna Scheidt
Seu é nome Sir. Seu sobrenome, Carvalho. Sir, vale dizer, não é uma referência ao título honorífico. É somente uma tradição familiar de batizar os filhos com nomes iniciados pela letra “s”. Nada mais. E Carvalho, bem, assim como a árvore milenar, traz em si a simbologia da força e da resistência. Ambos, homem e árvore, se fortalecem das intempéries.
Se você está achando que é muita simbologia para uma única pessoa, escuta essa: Sir nasceu em Farol, à época distrito de Campo Mourão. Farol, como todos sabem, significa uma luz, uma direção a seguir, o caminho do bem que guia o homem na vida. Este é Sir, o homem/árvore, o homem/luz, o homem/homem. Nada de super-herói.
Apenas um cidadão comum dotado de ânimo e coragem para fazer o que deveria ser tarefa de todos: fiscalizar o desvio de dinheiro público pelo Brasil. Trocando em miúdos, ele é um caçador de corrupção. Em novembro do ano passado, ganhou mais visibilidade após uma reportagem sobre a licitação milionária do lixo em Cascavel. Mas o seu trabalho vem muito antes disso.
Há cinco anos, este filho de agricultores que quase virou um domador de cavalos profissional, criou a ONG Vigilantes da Gestão, em que centraliza o trabalho de 1,4 mil pessoas, chamadas INGs, indivíduos não-governamentais. São cidadãos igualmente indignados que acompanham as receitas e despesas de órgãos públicos em quase todos os estados.
Sob a coordenação de Sir – pessoalmente ou via WhatsApp -, estão funcionários públicos, militares, jornalistas, advogados, promotores de Justiça, juízes, médicos, empresários, entre outros tantos voluntários secretos. Não há como precisar o número de fraudes com o dinheiro público, tampouco o montante desviado, mas uma coisa é certa: é muita grana! Mas como começou tudo isso? Como consegue? Como está vivo? Qual seu propósito? Para estas e outras perguntas, acompanhe a entrevista.
Você chegou de supetão em Cascavel. É um costume?
Nunca aviso quando venho e nunca falo onde estou. Normalmente, falo depois. Todo este cuidado faz parte do processo de investigação, além da questão de segurança mesmo.
Veio para alguma missão específica? Caçar onça (risos)…
Até brinquei sobre isso. Mas deixa a onça lá. Veja, nós trabalhamos de duas formas. Temos as operações em que fazemos diligências e visitas para identificar padrões de comportamentos nos órgãos públicos. Existem padrões que se repetem. E temos também as demandas provocadas, ou seja, denúncias que a gente recebe dos voluntários. Eles juntam o mínimo de material e eu faço a checagem in loco. Via de regra quando faço visita também busco elementos para completar alguma investigação. Já tivemos, por exemplo, investigação que durou cinco anos.
Aliás, tem vindo com frequência a Cascavel…
Se eu fizer um trajeto de Curitiba a Foz, em cada cidade que parar vou encontrar ilegalidade. A ilegalidade pode ser um sintoma da corrupção. É preciso separar um pouco as coisas. Agora, todo o sistema de governança política do país está podre. Todo ele. Então, você não pode curar tudo. Você tem câncer em metástase. Tem parte do organismo que está boa, mas o organismo está tomado.
Isso sinaliza algo?
Nós não estamos fazendo uma auditoria em Cascavel, não temos esta pretensão. Se não há uma demanda provocada ou a gente não está numa linha de operação, dificilmente a gente vai virar os canhões para a prefeitura e ficar dissecando ela. Mas se procurar a gente acha. Existe a corrupção que o prefeito sequer sabe. E não é local. É o sistema. Falar que não tem corrupção numa cidade é uma falácia. A gente tem que admitir que tem sim. E a corrupção pode ser desde uma agulha a um avião.
A invisibilidade faz parte do processo?
A nossa expectativa não é marcar gol ou fazer marketing. Somos bastante sutis para sermos colaborativos, pois, caso contrário, podemos atrapalhar alguma investigação em curso. Por isso, sempre vou ao Ministério Público e verifico se o assunto já não está sendo investigado. Trabalhamos em conjunto com o órgão que está afeto àquele material, seja MP, Polícia Federal ou Gaeco.
E como tudo começou?
Minha primeira investigação foi há 20 anos. Era muito mais difícil. Não tinha redes sociais. E não tinha lei também. Mesmo assim, consegui levar nove para o banco dos réus. Depois disso eu sempre fui uma pessoa ativa na questão social. Participava de tudo o que podia participar, mas não combate específico. Comecei a fazer palestras Brasil afora falando da importância de criar organizações para controlar o governo. Num certo momento, as pessoas começaram a cobrar soluções e não apenas discurso. Aí surgiu a ONG.
Qual era a pretensão na época?
Nossa ideia era trabalhar uma cidade, um case específico, mas nosso know how de apuração dos fatos começou a dar mostras que corrupção é algo sistêmico. O mesmo padrão se repetia em outras cidades. Estendemos o trabalho para a região e isso foi crescendo, quando vimos estávamos atuando em diversas regiões do Paraná. Depois começaram a vir chamados de outros estados e aí a coisa chegou onde está, que é a loucura de hoje com 1,4 mil vigilantes e demandas de todo o País.
Quem são os vigilantes?
Via de regra, os cidadãos indignados. Pode ser o empresário, o funcionário público, a professora, o estudante. Alguém que se revolta com a situação, não confia no sistema (TCE e Ouvidoria) e quer entregar isso às mãos de alguém que possa fazer alguma coisa. Daí ele pede para um “igual”. Recebemos chamados das Forças Armadas, da Força Aérea Brasileira, dos tribunais e até do exterior.
Você estudou muito para sistematizar tudo isso?
Eu sempre trabalhei como consultor empresarial. Nunca trabalhei no setor público, mas eu sempre fui um aficionado pelo Direito Administrativo. Sou autodidata e gosto disso. Sempre que eu olho para um problema, por vício de ofício, eu tento entender todo o sistema e a causa. Se você tem um serviço público de péssima qualidade ou ausência de atendimento de alguma demanda da sociedade, isso é resultante de um problema que está na origem do processo. Por exemplo, como é que funciona uma Câmara de Vereadores. Ou melhor, por que não funciona? Ela é feita para não funcionar. Entendendo isso, mexendo no processo, nós atuamos no comportamento político, mas a gente não discute comportamento. Se o prefeito quer construir uma ponte não temos nada com isso, mas se ele comprar saca de cimento superfaturada, aí nós atuamos.
Qual é o peso da palavra confiança?
Ela é enorme. Sinto até uma angustia pela confiança que temos na sociedade. É muito importante, mas ao mesmo tempo é uma escravidão. Eu não tenho mais vida social, não tenho como me negar a atender uma demanda porque eu sei que a pessoa que está confiando em mim tem isso como último recurso. Por outro lado, sei que sou usado muitas vezes. O grupo que perdeu uma eleição é uma força antagônica e quer destruir o que ganhou. Vem aí outra palavra importante: responsabilidade. Não podemos fazer juízo de valor sem elementos técnicos. Posso não gostar de uma prática de gestão, mas se ela estiver dentro da lei tenho que respeitar.
Ministério Público, Polícia Federal e Gaeco são parceiros?
Não temos parceria porque parceria compreende uma via de mão dupla e mesmo estes organismos não estão isentos de cometer algum deslize. Se houver, usamos o mesmo tom, não importa quem seja. Óbvio que o nosso foco hoje tem sido a gestão do recurso público, ou seja, evitar que o dinheiro saia. Se o dinheiro não sair de forma incorreta, a gente está fazendo a maior obra de caridade ao Brasil. No exemplo do lixo aqui em Cascavel, a redução entre o pretendido a pagar e o que foi efetivamente contratado, embora irregular (tem três ações em curso), foi uma economia de R$ 30 milhões. Qual é a movimentação que conseguiu trazer R$ 30 milhões para o município?
Os políticos estão na sua mira?
Não estamos fazendo isso porque queremos combater político. Estamos fazendo porque onde existem desvios existe corrupção. E a corrupção mata. Mata pela saúde precária, pela estrada esburacada, pela educação ruim, pela falta de segurança. Este é o quadro dantesco do país.
Não desanima neste poço sem fundo?
Acordo todos os dias com vontade de fazer mais. Todo mundo devia fazer isso. É claro, tem horas que dá tristeza. Uma coisa que me angustia muito é que é muito difícil de você pegar o chefe da corrupção. O chefe nunca assina nada. A corrupção não passa recibo. Então, quando você chega no terceiro escalão, no topo da pirâmide, sabe quem é, tem tudo mapeado, mas não consegue pegar, é frustrante.
Recebe muitas ameaças?
Já perdi as contas. As ameaças vêm de várias formas. Tive um atentado em 2016 na BR 277. Estava numa reta perto de São Luiz do Purunã, bateram na traseira do veículo e fugiram. O carro rodou e capotei. Deu perda total. Era para parecer um acidente. Por sorte ninguém se feriu. Depois disso fiz treinamento de tiro e busquei autorização na Polícia Federal para andar armado.
Tem medo?
O que é o medo? O medo é o que a faz a gente ficar vivo. O excesso de medo é covardia. Ele imobiliza. Medo é você tomar os cuidados na hora de chegar em casa, na hora de sair. Não sou um suicida, mas a coragem é maior que o medo.
Combate à corrupção exige uma mudança cultural?
Combate à corrupção tem que acontecer no dia a dia, em todos os momentos, em todas as instâncias, inclusive na iniciativa privada, no jeitinho brasileiro de cortar a fila, de aceitar troco acima do valor correto, de fazer gato na TV a cabo. Só que nós estamos há mais de 30 anos destruindo nossas células sociais e a célula mais importante que é a família. Eu aprendi na minha casa que o que é meu é meu. E o que é seu é seu, e assim por diante. É um valor basilar que vem de dentro de casa.
Vislumbra o fim da corrupção?
Corrupção nunca vai acabar. Precisamos fazer determinadas atuações cirúrgicas. Você tem um paiol cheio de mantimento e ratos. É impossível pegar todos os ratos. Então você coloca o gato lá. Se tiver 200 ratos e cinco gatos, em pouco tempo os ratos não existirão mais. Nós precisamos criar gatos porque são antagônicos. Um é inimigo do outro. Nós precisamos colocar vigilantes por todos os lugares, mesmo que não prendamos todos os corruptos, vamos criar um anticorpo.
Existe algum critério para se tornar vigilante?
Ser brasileiro. Até porque nosso time é invisível. Seria um risco ostentar o nome. Ele pode ser do governo, fora do governo, juiz, promotor, militar, da oposição, da situação. Não há problema nenhum porque nós vamos olhar apenas o objeto da denúncia. Se tem fundamento, não há o que discutir.
Qual é a lógica da corrupção?
É a lógica da relação custo benefício. O sociopata (e todo bandido pra mim é um sociopata), ele faz conta. Na corrupção é avaliado quanto se ganha e quanto se perde. A nossa legislação é extremamente confusa e frouxa. Tem lei para tudo, mas é frouxa. Então, o sistema que se organizou em torno da corrupção é muito rápido. No sistema privado, um oportunista tem mais dificuldade. Já o sistema de governança política do país é muito frouxo, sem dono. E ali gravita tudo o que há de pior.
Também há empresários corruptos…
Sem dúvida, 5% do empresariado brasileiro nasceu para mamar no sistema, nasceu com este DNA. São pessoas que veem uma oportunidade e vão ali. E o sistema é feito para o oportunista. Ele não é feito para o cidadão normal. O cidadão normal tem até dificuldade para acessar o sistema. A lógica da corrupção é ser oportunista, fazer análise de custo benefício e perceber que o Estado é um paquiderme, um grande elefante, cada vez mais pesado…
Defende o Estado mínimo?
A máquina pública tem que ser enxugada. Estado mínimo no sentido de ser eficaz, tem que ficar naquilo que é essencial. O político tem uma facilidade imensa de criar coisa. Toda hora você vê alguém criando algo novo… onde vai parar isso? O Estado ficou imenso. É humanamente impossível controlar tudo. No Paraná tem 50 técnicos da CGU para controlar 399 municípios. É incontrolável. E aí é prato feito. É a mesma coisa que colocar o bife fresquinho na soleira da janela. Em quantos minutos a varejeira chega?
E como você vê os partidos políticos?
A grande maioria são quadrilhas. Não vejo outra coisa. Quando um grupo de pessoas se reúne para cometer crimes é caracterizada uma quadrilha. Com raras exceções, vamos deixar claro isso. Veja bem, se eu tenho um estatuto partidário que tem regras e defende princípios morais (e todos defendem, com linhas bem claras), aí eu reúno pessoas e associo a este partido. Estas mesmas pessoas cometem crimes e eu não tomo nenhuma providência. Sou conivente. E a conivência é crime. O que seria desejável? Mudar a legislação e ter no máximo três partidos neste país. Não precisa mais que isso.
Já se frustrou com voto seu?
Tenho 59 anos, já votei muito. Já me frustrei sim. Mas você tem que escolher o menos pior e a sua avaliação pode não ser a melhor. Já votei em esquerda, direita. Avalio, voto e depois quero morrer…
O que devemos avaliar nas próximas eleições?
Primeira cois, se o candidato responde por algum processo. Segundo, avaliar a sua linha filosófica, e terceiro, não votar em família. Criam-se feudos familiares e isso é péssimo. É uma capitania hereditária este país. Outra coisa: não é tão importante o presidente, o governador, o prefeito. É muito mais importante o Congresso Nacional, a Assembleia e a Câmara. É preciso qualificar a pessoa que vai fiscalizar. Se você elege um parlamento frágil, ele é manipulado. Se você elege um Congresso forte, aí o presidente dança miudinho.
O que mais aprendeu com o ser humano nesta caminhada?
É complicado falar de ser humano. O ser humano é muito medroso. Não quer se expor. O povo está assustado. E isso o bandido sabe. Nós estamos numa sociedade acovardada. A sociedade está covarde. Perdeu sentimento de propriedade do que é seu. Ela é dona de sua vida. O Estado tem que servir você e não se servir de você. Não consigo entender como as pessoas são passivas. Perder o quê? Você vem para o mundo pelado e volta sem nada e caixão não tem gaveta… as pessoas precisam se desprender disso.
O que o dinheiro não compra?
A dignidade. A pessoa pode ser milionária, mas não ser digna. E o digno pode dormir sabendo que não traiu a própria convicção. Eu só preciso ter um carro para me locomover, uma cama para dormir e um bom chuveiro.
Alguém já lhe ofereceu dinheiro?
Nunca. Acho até engraçado… é uma felicidade pra mim não receber este tipo de proposta. Via de regra quem oferece dinheiro vai buscar o histórico da pessoa e o meu histórico não é muito bom. Sempre fui polêmico, combativo. Eu odeio falsidade.
QUEM É ELE?
Sir Carvalho, 59 anos, é o criador e coordenador da ONG Vigilantes da Gestão. Nascido em Farol, próximo a Campo Mourão, é filho dos agricultores Erothides e Manoel. Tem dois irmãos, Sidnei e Siderley. Tem uma filha que, para sua tranquilidade, mora no exterior. Foi casado cinco vezes, mas seu trabalho, digamos, é arriscado demais…
Fonte: https://revistaaldeia.com.br/#images-2