O fim dos camarotes jurídicos dos ricos e poderosos, imunes às leis penais, tem causado surpresa, mas é um passo republicano necessário no amadurecimento da democracia.
O Superior Tribunal de Justiça manteve preso por tráfico de drogas um réu com quem foram encontradas 12 cápsulas de cocaína (8,73g) e R$ 82 em notas de pequeno valor. A prisão, no Brasil, em regra, só acontece ao fim do processo. Não era esse o caso, mas a Corte entendeu que a prisão extraordinária, chamada de “preventiva”, aplicava-se a essa situação porque havia indicativos de que o réu praticava delitos de forma reiterada e habitual.
São réus como esse que ocupam grande parte das vagas de nosso sistema carcerário. De fato, este é composto em sua maioria por pobres, jovens (75% com menos de 34 anos), negros (67% do total) e de baixa escolaridade (59% analfabetos ou sem ensino fundamental completo). Para a tranquilidade de poucos e o desespero da sociedade, o universo carcerário é bastante estranho aos grandes corruptores e corrompidos, “notáveis cavalheiros” que também causam graves danos à coletividade. Em nossa população carcerária, a quarta maior do mundo, com cerca de 607 mil presos, é difícil encontrar alguém que tenha sido processado da primeira à última instância e esteja preso por corrupção.
Causa espanto e traz esperança o fato de que, em operações como a Lava-Jato, grandes empresários e altos agentes políticos, frequentadores dos mais distintos camarotes, não encontram um tratamento privilegiado no processo penal. Nem deveriam encontrar, em razão do risco causado pela reiteração criminosa, da gravidade do dano e da igualdade de todos perante a lei, fatores que justificam a prisão como medida extraordinária.
Como no caso dos traficantes contumazes, o risco à sociedade causado pela liberdade dos corruptos e corruptores habituais exige que eles sejam afastados dos meios que permitem a continuidade do crime. Com efeito, se mantidos soltos, continuarão a ter acesso e influência sobre as decisões, as pessoas e os recursos que perpetuarão crimes, dentro de um contexto da prática de corrupção como modelo de negócio e de gestão da coisa pública que se estendeu por mais de uma década.
Além disso, a gravidade do tráfico não supera a da corrupção. Os desvios bilionários da corrupção corroem a saúde pela ausência de saneamento básico. Matam pela ausência de hospitais, aparelhos e medicamentos para atendimento. Fortalecem organizações criminosas pela educação e segurança deficientes, propiciando o aumento da violência e da marginalização. Geram um Estado paralelo, que governa para interesses privados. Para além do tráfico, a corrupção mina perigosamente a confiança da população nas instituições e no regime democrático.
Não há razão para distinguir o tratamento dado ao traficante e ao criminoso de colarinho branco. No fim do mês passado, um senador da República foi preso em pleno exercício do mandato. Na decisão, bem pontuou o eminente ministro do Supremo Tribunal Federal Celso de Mello que a lei vale para todos, “não importando sua posição estamental, se patrícios ou plebeus, governantes ou governados”. O fim dos camarotes jurídicos dos ricos e poderosos, imunes às leis penais, tem causado alguma surpresa, mas é um passo republicano necessário no amadurecimento de nossa democracia.
A melhor resposta para a situação de risco à sociedade — para o perigo de repetição de crimes altamente lesivos — está dentro do próprio Estado de Direito, com a observância das regras do jogo. A Lava-Jato não transforma a prisão preventiva, de exceção, em regra. Apesar de já terem sido denunciados centenas de fatos criminosos e processadas mais de 170 pessoas, apenas 24 delas se encontram encarceradas. Destas, 11 já foram julgadas e condenadas em primeira instância a mais de 250 anos de prisão. Se os presos fossem 24 líderes do tráfico no país, ninguém alardearia que há excesso nas prisões.
Autoria: Roberson Pozzobon, Júlio Noronha e Deltan Dallagnol são procuradores da República e integrantes da força-tarefa da Lava-Jato em Curitiba
Fonte: Site do MPF – O Globo